Resumo
Este trabalho possui o escopo de realizar uma análise crítica quanto à sistemática de cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) adotada pelo Estado de Minas Gerais, à luz da Constituição Federal e da legislação estadual que trata o tema, sob o viés de análise da regra matriz de incidência tributária do mencionado tributo. Objetiva-se gerar uma reflexão no leitor acerca da correta interpretação da legislação e do modo justo de se elaborar o cálculo do tributo nas doações gravadas com usufruto.
Palavras-chave: Tributo; ITCMD; base de cálculo; doação; usufruto.
Introdução
Quem lida com cartórios sabe bem como podem ser vultosos os valores que envolvem a tributação imobiliária. Este artigo foi idealizado a partir da vivência no dia a dia da advocacia, atendendo às demandas de clientes que, inconformados com o alto valor das guias de ITCMD nas doações com gravação de usufruto, frequentemente questionam a (in)justiça da sistemática de realização do cálculo para se chegar ao valor de recolhimento dessas guias. Busca-se, com este estudo, entender a forma de cobrança do ITCMD em doações com usufruto no Estado de Minas Gerais. Posteriormente, realiza- se uma análise crítica quanto à interpretação que o Fisco Mineiro faz da legislação estadual que abarca a temática. Conclui-se este estudo, inclusive, com uma sugestão do que poderia ser uma melhor interpretação da legislação estadual para realizar a sistemática de cobrança do ITCMD em doações gravadas com usufruto.
I– Da contextualização da temática
O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, conhecido pela sigla ITCMD ou ITCD, é um tributo de competência estadual, previsto no artigo 155, I, e seu parágrafo primeiro, da Constituição Federal:
Artigo 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;
1º O imposto previsto no inciso I:
– relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal
– relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;
O Objeto do presente estudo visa questionar a constitucionalidade da forma de cálculo adotada pelo Estado de Minas Gerais nas doações de bens imóveis com usufruto. Sendo assim, faremos uma análise específica desta temática, não abrangendo a literalidade do ITCMD em suas diversas hipóteses de incidência.
Em Minas Gerais, o ITCMD é regido pela Lei Estadual 14.941/2003, e regulamentado pelo Decreto Estadual 43.981/2005. Esta legislação, agregada à sua interpretação feita pela Receita Estadual, sustenta a crítica à forma de elaboração do cálculo do ITCMD nas doações de bens imóveis com gravação de usufruto, conforme demonstraremos adiante.
A mencionada crítica é embasada no Princípio da Vedação ao Bis in Idem Tributário, uma vez que entende-se haver duas vezes a mesma cobrança de ITCMD inerente ao mesmo fato gerador do tributo. Em verdade, o Estado de Minas Gerais acaba, em última análise, considerando dois fatos geradores do ITCMD nas situações ora combatidas, “criando”, para o mencionado tributo, um fato gerador não previsto na Constituição Federal, indo de encontro à regra matriz de incidência tributária, que não prevê o fato gerador “criado” pelo Fisco Mineiro.
É exatamente sob esta argumentação que nos debruçaremos a seguir, defendendo a inconstitucionalidade da forma de realização do cálculo de ITCMD em doações com usufruto no Estado de Minas Gerais.
II– Da inconstitucionalidade e da ilegalidade da sistemática do cálculo do ITCMD
Antes de adentrarmos à efetiva análise acerca da inconstitucionalidade proposta, faz-se necessário o desenvolvimento do raciocínio sobre a forma de se realizar os cálculos inerentes ao ITCMD a título de doação com usufruto.
A Lei Estadual 14.941/2003 aduz o seguinte:
CAPÍTULO I
Da Incidência
Art. 1º O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCD – incide:
VI – na instituição de usufruto não oneroso;
CAPÍTULO IV
Do Cálculo do Tributo
Seção I
Da Base de Cálculo
Art. 4º A base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito recebido em virtude da abertura da sucessão ou de doação, expresso em moeda corrente nacional e em seu equivalente em Ufemg.
- 1º Para os efeitos desta Lei, considera-se valor venal o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da avaliação ou da realização do ato ou contrato de doação, na forma estabelecida em regulamento.
- 2º A base de cálculo do imposto é nos seguintes casos: (…)
III – 1/3 (um terço) do valor do bem, na instituição do usufruto, por ato não oneroso;
(…)
Seção II Da Alíquota
Art. 10. O imposto será calculado aplicando-se a alíquota de 5% (cinco por cento) sobre o valor total fixado para a base de cálculo dos bens e direitos recebidos em doação ou em face de transmissão causa mortis.
Da mesma forma, o Decreto 43.981/2005 regulamenta a matéria:
Art. 3º. Ocorre o fato gerador do imposto:
VI – na instituição de usufruto não oneroso;
Art. 12. Na hipótese de instituição de usufruto, a base de cálculo é 1/3 do valor venal da propriedade plena do bem.
Como se percebe, a legislação estadual preconiza a instituição de usufruto como fato gerador do ITCMD, de forma que, na realização, pela Fazenda Estadual, do cálculo devido a título de ITCMD, em uma doação com usufruto, leva-se em conta a aplicação da alíquota de 5% sobre o valor total do imóvel, além de outra incidência de 5% sobre um terço do valor total da propriedade. Percebam que esta fração de um terço do imóvel sofre duas vezes a incidência da mesma alíquota de 5%.
Aliás, é o que se depreende do posicionamento da própria Fazenda Pública do Estado de Minas Gerais:
Na instituição de usufruto, a base de cálculo corresponde a 1/3 do valor total do bem, considerado o valor da sua propriedade plena. (…) Em relação aos fatos geradores ocorridos a partir de 28 de março de 2008, deverá ser
observada a alíquota única de 5% (cinco por cento). A partir de 29 de dezembro de 2007, a extinção de usufruto não é mais hipótese de incidência de ITCD. (…) Também, não cabe mais abatimento, sobre o valor do imposto a ser pago, do valor recolhido anteriormente quando da instituição do usufruto. No que se refere à doação (com reserva de usufruto) e posterior extinção dessa reserva, deverá ser observado o seguinte:
(…)
II – Quanto aos fatos geradores ocorridos a partir de 28 de março de 2008, a tributação se dará na transmissão da nua-propriedade. A base de cálculo será o valor total do bem e deverá ser observada a alíquota única de 5%.
Glossário relativo ao ITCD – SEF/MG. Disponível em: < http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/orientacao/orie ntacao_002_2006.html>. Acesso em: 28/08/2020.
Percebam que o cálculo para cobrança do ITCMD é feito a uma alíquota de 5% sobre o valor total do imóvel, além de outros 5% sobre um terço do valor total da propriedade. Soma-se a doação (5% sobre o valor do imóvel) com o usufruto (5% sobre um terço do valor do imóvel), para se chegar ao valor total da guia de ITCMD, a ser recolhida pelo contribuinte.
Dessa forma, o Fisco mineiro realiza, em nosso modesto sentir, uma interpretação inconstitucional e também ilegal da supramencionada legislação estadual acerca do ITCMD nas doações com usufruto.
Isto porque na regra matriz de incidência tributária do mencionado tributo, em seu antecedente normativo, sob o viés do critério material, não há previsão constitucional de usufruto como fato gerador da obrigação tributária.
Assim, a inconstitucionalidade se revela na análise do fato gerador do tributo. Ora, o fato gerador do ITCMD, na análise em questão, é a doação, e não o usufruto, conforme assevera o alhures mencionado artigo 155, I, da Constituição Federal.
Diante da sistemática de cálculo adotada pela Fazenda Pública de Minas Gerais, acaba havendo a aceitação de dois fatos geradores para o mesmo tributo, sem previsão constitucional. Nossa Carta Magna não prevê o usufruto como fato gerador do ITCMD. Logo, legislações infraconstitucionais e interpretações dos Fiscos Estaduais no sentido de admitir esta “dupla cobrança” sem previsão constitucional se configura como verdadeira inconstitucionalidade.
Há, inclusive, violação ao Princípio da Vedação ao Bis in Idem Tributário, uma vez que há dupla incidência de alíquota sobre um único fato gerador (doação), que acaba se desdobrando, em uma análise pragmática, em dois fatos geradores (doação e usufruto), sendo um desses fatos geradores (usufruto) uma hipótese de incidência sem previsão constitucional. Além disso, o Bis in Idem tributário também se caracteriza pelo fato de a mesma fração de um terço do imóvel sofrer duas vezes a incidência da mesma alíquota de 5%.
Nesse sentido, Leandro Paulsen nos ensina que:
A expressão bis in idem designa a dupla tributação estabelecida por um único ente político sobre o mesmo fato gerador. (…) A Constituição vedou expressamente a bitributação e o bis in idem relativamente aos impostos (…)
(PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. Capítulo IV: competência tributária – 39 bitributação e bis in idem. 11 Ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2020.)
Dessa forma, há também violação à regra matriz de incidência tributária do ITCMD em seu conseqüente normativo, sob a análise do critério quantitativo, pois a alíquota cobrada pelo tributo, em última análise, acaba ultrapassando o limite preconizado em lei.
Como vimos, o fato gerador do ITCMD é a doação, e não o usufruto. Sendo assim, em doações com usufruto, acaba havendo dupla tributação (alíquota de 5% incidindo duas vezes sobre a mesma fração de um terço do imóvel) por um único ente político sobre o mesmo fato gerador, qual seja, a doação.
Além da análise constitucional, há que se fazer ainda uma análise à luz da legalidade. Como alhures demonstrado, a legislação do Estado de Minas Gerais estipula uma alíquota máxima de 5% a título de ITCMD.
Destarte, ao se estabelecer uma sistemática de cálculo de ITCMD onde é cobrado 5% sobre o valor total do imóvel, acrescido de outros 5% sobre um terço do valor deste mesmo imóvel, em última análise, há evidente ilegalidade, pois o valor pago atinente ao ITCMD será superior à alíquota limite de 5% estabelecida pela Lei Estadual 14.941/2003.
Expostos estes argumentos, reiteramos que, em nosso modesto entendimento, haveria patente inconstitucionalidade, bem como ilegalidade, na sistemática de cálculo do ITCMD em doações com usufruto no Estado de Minas Gerais.
III – Da interpretação da legislação estadual à luz da limitação de alíquota prevista em lei
Constatadas as apontadas inconstitucionalidades e ilegalidade na interpretação do Fisco Mineiro acerca da legislação estadual do ITCMD, no que tange ao cálculo do tributo nas doações com usufruto, o presente estudo aponta uma possível saída para a situação.
Trata-se de realizar a interpretação da Lei Estadual 14.941/2003 e do Decreto Estadual 43.981/2005 à luz da legalidade e do Princípio constitucional da Vedação ao bis in idem Tributário, conferindo, assim, adequação à forma de cobrança do ITCMD em doações com usufruto.
Para tanto, bastaria que a sistemática da cobrança do ITCMD fosse realizada cobrando-se 5% sobre um terço do valor total do imóvel (inerente ao usufruto) e 5% sobre os dois terços restantes do valor do imóvel (inerente à doação).
Percebam que a legislação estadual sequer necessitaria ser alterada. Basta que o Fisco confira esta interpretação, que estaria em estrita conformidade com o que preconiza a Lei Estadual 14.941/2003 e o Decreto Estadual 43.981/2005.
Dessa forma, a alíquota efetiva do ITCMD não ultrapassaria o limite legal de 5% sobre o valor de mercado do imóvel e, ao menos, não haveria dupla incidência de alíquota sobre a mesma fração de valor da propriedade, como ocorre na atual sistemática de cálculo adotada pelo Fisco Mineiro, em sua interpretação da legislação estadual.
É bem verdade que nossa crítica quanto ao fato gerador (usufruto) não previsto expressamente na Constituição Federal como hipótese de incidência para o ITCMD ainda persistiria, mas ao menos haveria maior justiça no cálculo do tributo. Ademais, sejamos pragmáticos: a forma mais eficiente e célere de se promover, o quanto antes, a adequação da sistemática do referido cálculo, seria uma alteração da interpretação conferida pelo Fisco à legislação.
IV – Das conclusões
Diante de todo o exposto, este artigo buscou evidenciar a relevância da temática, por se tratar de uma situação bastante corriqueira e que pode estar desrespeitando a Constituição Federal, bem como a própria Lei Estadual 14.941/2003.
O objetivo principal do trabalho foi realizar uma análise crítica quanto à sistemática de cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) adotada pelo Estado de Minas Gerais, nas doações com usufruto, à luz da Constituição Federal e da legislação estadual que trata o tema, sob o viés analítico da regra matriz de incidência tributária.
Constatou-se, em nosso modesto sentir, uma inconstitucional e ilegal interpretação do Fisco Mineiro acerca da legislação estadual, para realizar os cálculos de ITCMD em doações com usufruto. Importante frisarmos que, como consectário lógico de tal situação, poderia inclusive gerar a recuperação de indébito tributário dos últimos cinco anos.
Importante frisarmos também que, em que pese o estudo ter se limitado à análise da situação no Estado de Minas Gerais, o raciocínio se estende a todos os Estados da Federação que adotem a mesma sistemática de cálculo de ITCMD em doações com usufruto.
Sobre o autor
BRAGA, Gabriel Moreira. Advogado no escritório Marques e Ferreira Advogados Associados. Residente Jurídico da Procuradoria Geral do Município de Juiz de Fora. Pós-graduado em Direito Público. Pós-graduando em Direito Tributário e Gestão Tributária.
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Referências bibliográficas
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 25/07/2020.
MINAS GERAIS. Assembléia Legislativa. Lei Estadual 14.941/2003. Disponível em:< http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/leis/l14941_2003.html>. Acesso em: 25/07/2020.
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MINAS GERAIS. Secretaria Estadual da Fazenda. Glossário relativo ao ITCD – SEF/MG. Disponível em: < http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/orientacao/orientacao_00 2_2006.html>. Acesso em: 28/08/2020.
PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 11 Ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2020.